sexta-feira, abril 19 2024

[spoilers] Crazy Whitefella Thinking é exaustivo. Toda a jornada percorrida por Kevin Garvey Sr. é difícil, perigosa, excruciante, quente, solitária, poeirenta, longínqua, trôpega, adversa e meio insana, e ao final do episódio o espectador é deixado com a sensação de que acabou de correr uma maratona de ressaca no dia mais quente do século. Não há uma gotinha sequer de alento durante o episódio – e é isso que torna ele tão eficiente.

Quando Personal Jesus começa a tocar nos créditos iniciais (a versão de Richard Cheese, e não a original, do Depeche Mode, e nem a correta, do Johnny Cash), é natural atribuir o significado à ideia aparente de que Kevin Filho é o novo salvador. Entretanto, The Leftovers sempre foi mais sobre a consequência do sumiço na galera deixada para trás do que sobre o sumiço em si. Assim, o conceito inicial de que Kevin é o “salvador pessoal” dos viventes ao seu redor dá lugar à interpretação que todos precisam de algum tipo de salvação.

Ou propósito, como Kevin Pai explica para seu companheiro de barba desgrenhada e grisalha antes deste morrer por ser muito azarado mesmo. O ex-chefe de Polícia de Mapleton e ex-louco parece tão determinado, tão certo de suas ações, que é difícil não acreditar que ele está fazendo isso por algo maior (no caso, evitar um novo dilúvio divino). Mas Crazy Whitefella Thinking deixa bem claro que é uma busca pessoal por propósito em um mundo pós-14 de outubro: ele é o único que pode salvar o mundo; ele deveria ser a estrela do livro de Matt; é mais importante ele aprender a última canção do que Chris sobreviver; ele não tem outra opção a não ser matar o seu totem; ele quer que o sujeito do carro sobreviva para poder ter ajuda – e não dá a mínima quando o cara toca fogo em si mesmo; ele precisa ser importante de alguma forma.

Ao longo do episódio, a fé de Kevin Pai no seu papel essencial nas coisas recebe bigornadas sem piedade, e o fato dele continuar caminhando de muletas em direção a algum destino só reforça a importância dessa crença – o que confere um caráter trágico e melancólico à jornada. É comovente ver aquele velho recebendo uma rasteirada atrás da outra e seguindo em frente, mesmo que a gente não saiba/não compartilhe das razões. E muito disso se deve à performance de Scott Glenn, que consegue manter um ar de vulnerabilidade em um personagem tão agressivo, brusco, ríspido e intenso. Há uma fragilidade na voz dele. Ainda que repleta de energia, bem como palavrões, ela soa quebradiça e combina com as dificuldades de movimentação do personagem.

Crazy Whitefella Thinking injeta creatina nesse cansaço utilizando quase sempre a câmera na mão – a exceção são justamente os poucos momentos onde há uma grande derrota, como se Kevin tivesse ficado estagnado (logo após o toca-fitas estragar e logo após chegar na cruz) – e uma fotografia que realça tons marrons, conferindo uma atmosfera tão poeirenta e quente que chega a dar sede. A diretora Mimi Leder também não tem medo de aproximar sua câmera quase ao ponto do choque físico, mostrando o lamaçal de dificuldades enfrentadas através das rugas e detalhes de maquiagem (pintura, machucados etc).

Mas é interessante perceber que, justamente na conversa com Grace, a câmera chacoalha um pouco menos e há uma atmosfera menos selvagem, menos opressiva, mais arejada e até mesmo em um cenário mais branco. Além de explicar a espiral de insanidade que foi o final de Don’t Be Ridiculous, a cena parece sugerir uma certa cumplicidade entre ambos, como se o encontro fosse uma espécie de certificação em cartório que eles esperavam para garantir que estão no caminho certo.

Até porque o comovente monólogo de Grace também indica a necessidade de encontrar uma propósito na vida, ainda mais tendo que lidar com uma situação pior que a de Nora, até então a Rainha da Desgraça do Arrebatamento. E aí o episódio reafirma seu conceito de que a busca por salvar o mundo, entender o mundo ou afogar policiais do mundo usando uma gangorra é apenas isso, uma busca. A necessidade de se sentir importante ou especial. O próprio Matt, talvez a pessoa mais bondosa do universo desde o casal que me deu 10 reais pra comprar um refrigerante em uma lanchonete quando viram meu estado de ressaca nuclear, simplesmente não admite que Kevin Pai tenha jogado seu manuscrito fora. Porque a ideia de que o livro não é especial sugere que o padre não está fazendo nada especial, e assim ele precisaria lidar com toda a balbúrdia religiosa pós-14 de outubro sem ter realmente um propósito.

Pecando apenas no monólogo onde o Kevin Progenitor explica como foi parar na Austrália, pois o excesso de cortes e a anedota muito extensa tiram um pouco da força do relato,  Crazy Whitefella Thinking é mais um episódio intenso que The Leftovers despeja sobre os ombros de seus espectadores. Explica alguns mistérios, cria alguns novos (sério, vocês matariam um bebê para curar o câncer?) e termina não com um gancho, mas uma convocação para continuar assistindo.

Ainda assim, é na jornada de seu protagonista que consegue oferecer ao público uma experiência envolvente. Exaustivo, mas recompensador.

3 comments

  1. Poderiam me confirmar isso: A cena em que o Kevin sênior ta vendo a arca ser construída parece ser um delírio dele, não revi pra confirmar, mas a frente da casa da Grace não combina com a cena do afogamento do xerfie. E as pessoas que estão construindo a arca parecem ser a versão adulta dos filhos da Grace que o Kevin pai tinha acabado de ver no álbum (e depois descobrimos que eles morreram).

  2. Se tratando de The Leftovers, e se tratando do pai de Kevin, na dúvida entende-se que seja uma alucinação caso a série não explique.

  3. André, o nome desse episódio não é Down Under mas sim
    Crazy Whitefella Thinking.

Deixe um comentário