quinta-feira, março 28 2024

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“You are Ok.” – Don Draper, Smoke Gets in Your Eyes (Piloto)

Mad Men sempre se destacou por ser uma série que caminha no seu próprio ritmo. Nunca se desenvolveu pensando no espectador, no sentido de atender exigências ou expectativas, nem seguindo fórmulas ou regras próprias do formato: nunca houve objetivos claros, personagens não tiveram que ir de um ponto a outro, clímax e desdobramentos esperados pouco ocorreram.

Daí que é um tanto surpreendente ver como seu episódio final foi dedicado em boa parte para dar uma espécie de final feliz para quase todos os seus personagens principais. Ou, se não feliz (Betty e Sally), ao menos uma sensação de jornada concluída. Tivemos até mesmo uma típica montagem de despedida, mostrando como cada um deles encerra essa trajetória. Típica para o formato, mas certamente não para a série em que muita gente nem mesmo esperava ver de novo esses personagens. O que não significa que, em si, seja algo ruim ou uma facilidade – David Simon utilizava em suas obras-primas The Wire e Treme, por exemplo.

A concessão de Matthew Weiner talvez seja inesperada, mas ao menos para mim, muito bem vinda: acompanhamos por tanto tempo essas pessoas que é prazeroso vê-los numa espécie de conclusão, e plenamente satisfatória. E não é que para isso fosse preciso uma mão pesada ou uma trapaça de roteiro para que esse final fosse possível. Tudo ali vinha sendo desenhado ha um bom tempo e em nenhum momento soa falso ou não condizente com a verdade de seus personagens: quando Joan sugere a Peggy uma sociedade, parece o final perfeito, vitorioso, para as duas grandes mulheres da série. Mas é uma conclusão que apenas traria satisfação para o espectador, e Peggy logo conclui que aquilo é o que Joan precisa, mas não ela, que ficará na McCann fazendo o que gosta e plenamente adaptada ao ambiente (a cena no início em que ela consegue manter uma conta é importante como ilustração). É a isso que me refiro como “verdade” dos personagens.

Além disso, tudo é tratado com a excelência de sempre, nos diálogos, atuações, encenação e escolhas dramaticamente importantes para uma conclusão o mais completa possível. Interessante como tudo parece girar em torno de Joan e Peggy, uma terminando um relacionamento enquanto a outra começa um, ambas certas do que querem profissionalmente e, não menos importante, tendo uma despedida apropriada daqueles que lhes foram mais importantes – dentro do elenco principal deste núcleo, Roger e Pete só interagem com elas. O “person to person” do título tem um outro significado na história de Don, mas aqui é de uma forma muito direta, às claras, os personagens se encontram aos pares, e uma única vez, para o adeus definitivo.

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Vale ressaltar que, exceto para o protagonista, Weiner deixou um fim digno pra todos. Pete já teve seu final no episódio anterior, mas aqui não só faz um grande elogio a Peggy, como diz, sem ressentimento algum, que nunca disseram algo parecido a ele. É uma enorme diferença do personagem imaturo e mimado que conhecemos e que permaneceu assim por anos. E que simbólico o cacto que ele deixa pra ela, e com os olhares e sorrisos, representam bem uma relação em que, após tudo, sobraram admiração e respeito.

Já Roger, não só o gesto de deixar parte de sua herança para Kevin, mas o fato de nunca exigir que sua paternidade fosse reconhecida. É algo nobre se considerarmos que alguns episódios atrás o personagem lamentava a morte de seu sobrenome. Despede-se casando com Marie e é engraçado como poucas cenas são suficientes para mostrar que faz todo o sentido. É uma questão de química, de diálogos e de situações que mostram como aquilo funciona pra ele a partir do quanto já o conhecemos (o sexo, uma mulher que numa discussão o coloca pra fora do quarto, as risadas, etc).

Enquanto Joan troca um relacionamento pelo trabalho (algo impensável pra Joan do início da série e é interessante a babá de Kevin como secretária, reforçando os laços que realmente importam no final), Peggy começa algo em cena digna de comédia romântica. Vi várias pessoas reclamando de como foi repentino, mas não é como se essa relação com Stan já não fosse óbvia, construída ao longo dos anos. Stan, o terceiro homem importante na vida dela, que também sabe seu maior segredo (curioso paralelo com Don e as três mulheres de sua vida) e que a última vez que vimos ficou ao telefone com ela, ambos trabalhando em silêncio. Não à toa, as declarações de amor são feitas via telefone (e, igualmente interessante, após o último conselho dele para ela ser “supere Don”), mas resultam no último e mais íntimo “person to person”:

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Do outro lado do país, outra pessoa também terá conversas importantes pelo telefone, mas a distância permanecerá e não só geográfica.

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Deve ser a primeira vez na história que o protagonista de uma série não atua com o restante do elenco principal em não um, mas nos dois últimos episódios. O único contato de Don são as três ligações “person to person” para as mulheres de sua vida (lembrando do que Ted disse no retorno da série, “há três mulheres na vida de todo homem”). Com Sally e Betty foi apenas para descobrir que nem os filhos, nem a mãe deles, querem seu retorno. Os diálogos são menos um embate e mais uma compreensão mútua de que, de fato, ele não é nem a segunda melhor opção para as crianças. Há um tanto de decepção que esta tenha sido a última interação entre Don e Sally, e que a conclusão para a personagem seja ajudar a mãe e passar mais tempo com ela em casa, mas a conversa entre ele e Betty é devastadora. O último “Birdie…” sussurrado e January Jones mais uma vez calando seus detratores.

A terceira ligação, para Peggy, é Weiner deixando claro que não esqueceria o que, pra mim, é a relação mais importante de toda a série. Não temos nada parecido com “My Way” em The Strategy, mas “só liguei porque percebi que nunca disse adeus para você” é bonito o suficiente, considerando que o personagem abandonou tudo e só quis manter contato com os filhos. E o modo como ela pergunta o que ele teria feito de tão ruim é o de alguém que há anos sabe que há algo, mas sempre respeitou e nunca quis perguntar.

Mas Don foi para a Califórnia como última tentativa de salvar alguém, Stephanie, que também recusa qualquer ajuda, não sem antes deixá-lo em um retiro espiritual. Até o momento em que ele se encontra paralisado após a conversa com Peggy, o único encontro “person to person” que ele tem é com uma senhora numa dinâmica de grupo que, na falta de palavras, expressa com um empurrão o que sente na presença dele. Ninguém precisa ou quer ficar ao lado de Don Draper, exceto, talvez, a empresa onde ele seria só mais um e que não desmoronou com sua ausência (como ele comenta com Peggy). E que interessante a abordagem da mulher que o levanta: ele diz que não consegue se mexer e ela não oferece ajuda, e sim que ele a ajude, pois não quer ir sozinha ao seminário. Mesmo nessa situação, Don precisa se sentir útil a uma mulher.

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E então chegamos às duas últimas sequências da série, amplamente discutidas e que ainda serão motivo de várias conversas durante anos e anos. Há algumas formas mais evidentes de se enxergar a cena em que Leonard desabafa sobre o sonho em que se vê como um produto na geladeira que ninguém escolhe: a primeira, claro, é a catarse de Don vindo na empatia e no reconhecimento do sofrimento do outro e que é muito parecido com o seu (Don só presta atenção no depoimento no momento em que Leonard diz que ninguém se importa que ele partiu). Mas há uma curiosidade aí, pois Leonard é quase o exato oposto de Don Draper, sem atrativos físicos e sem causar impressão por onde passa. Por que então isso comove tanto nosso protagonista, a ponto de ser seu único real contato (person to person) em todo o episódio?

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Pra explicação, talvez seja necessário entender um pouco sobre o Instituto Esalen, o retiro onde Don está. Alguns amigos recomendaram o documentário The Century of the Self, que aborda o uso de teorias psicológicas (em especial a psicanálise freudiana) pelo governo e corporações americanas no marketing e venda de produtos. Na terceira parte, intitulada Existe um Policial em Nossas Cabeças e Ele Tem de Ser Destruído, conhecemos o Esalen, criado no final dos anos 60 como forma de resistência ao sistema: uma vez que as manifestações e protestos são repreendidos pelo Estado com violência, a solução será criar um espaço em que as pessoas possam passar por um auto-conhecimento e, assim, mudar o estado das coisas a partir da mudança e redescoberta de cada indivíduo. O que interessa aqui para entender a sequência em Mad Men é a técnica utilizada por um dos fundadores do Esalen, o psiquiatra Fritz Perls: a pessoa, na terapia em grupo, deveria colocar o que havia de mais íntimo na cadeira em frente ao grupo e conversar com ela. Leonard, então, seria este interior de Don, que vai muito além de toda a aparência que ele criou pra si. É justamente a cadeira de frente a ele e, não à toa, como muitos vieram a perceber, Leonard é um anagrama para “Real Don”. O protagonista, portanto, estaria se conectando com seu verdadeiro eu, Dick Whitman.

Mas há uma forma mais cínica de interpretar a cena: toda a sequência representaria uma das inúmeras reuniões que nos acostumamos a ver Don Draper vendendo uma campanha para um cliente com um maravilhoso discurso. Exceto que desta vez é o produto quem fala. Observe que Don, o mestre dos discursos, não emite uma única palavra durante todo o tempo. E apenas ouve Leonard, o produto “empacado” na geladeira e que precisa ser “vendido”. A reação emocional do protagonista seria, então, o momento em que percebe que a publicidade é o seu lugar.

O que daria apoio à mais aceita teoria em relação ao final, de que Don é o criador da mais famosa propaganda da Coca-Cola e considerada uma das melhores, mais importantes, da história. Não só isso, mas uma série de detalhes corroboram a teoria: a começar pelo sorriso dele quando a câmera se aproxima pela última vez que o vemos, e ouvimos o som de um sino, normalmente associado a um insight, uma ideia que surge. A conversa com Peggy também aponta para a possibilidade de seu retorno, ao dizer que a McCann ainda o aceitaria (“parece que já aconteceu antes(…) não gostaria de trabalhar com a Coca-Cola?”), e, claro, todo o trabalho da figurinista Janie Bryant, ao trazer personagens com roupas bem similares às vistas no comercial.

Mas há outras duas possibilidades igualmente aceitáveis, mas que do ponto de vista do espectador talvez não sejam tão interessantes: 1. Don enfim encontra paz de espírito, passa um bom tempo naquele lugar, o comercial da Coca-Cola já existe e ele, como todo mundo, já conhece; ao meditar pensando numa nova vida, ele acaba pensando na propaganda, representando o que realmente importa pra ele e aquele ambiente pouco faz pra mudar isso; 2. O corte para o comercial nada tem a ver com o protagonista; Don encontra seu lugar e a mudança para a propaganda é um comentário de que, mesmo sem ele, a publicidade continuará e transformará em produto a ser comercializado mesmo aquilo que parece afrontar, lutar contra o sistema.

A intenção de Weiner claramente é deixar essa questão em aberto. Enquanto metade do episódio se destina a fechar ciclos de personagens, a outra permite o otimismo (o protagonista enfim mudou) e o cinismo (como já várias vezes dito, e Stan repete aqui, o protagonista sempre faz isso, ou seja, nada visto e vivido o fez mudar), e até uma mistura das duas coisas. No fim das contas, independente da teoria que o espectador toma como verdadeira, a conclusão me parece a mesma: a publicidade venceu e toda experiência, por mais pessoal que seja, é apropriada, reprocessada e se torna algo vendável e universal. É um fechamento perfeito para uma série que nunca deixou essa questão de lado.

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Como espectador, confesso que gostaria de ver Don Draper retornando à McCann, a fúria de Jim Hobart até que ele ouve a ideia para a Coca-Cola. Obviamente que seria um final falso para os padrões da série. A ambiguidade cai melhor em Mad Men, coerente e fiel aos seus princípios até o fim.

5star

17 comments

  1. Review maravilhosa para um fim maravilhoso! Mad Men pede análises longas, contemplação, reflexão, como nenhuma outra série dos últimos tempos pediu! Vai deixar muitas saudades!

  2. Bota saudades nisso, Vini… e obrigado pelo feedback! :)

  3. Se é em relação ao final da série, com certeza, Renata. Agora se for o texto, obrigado! :P

  4. Valeu, Felipe! Eu tinha lido trechos da entrevista do Weiner, mas parece que esse link está mais completo. Darei uma olhada depois, brigadão pela dica

  5. Obrigado pelas palavras, Daniel. :) Legal é que voce também começa o texto com frase do Don da primeira temporada, que realmente foi um espelho dessa última. Achei curiosa a sua interpretação do sino no final, pensando na máquina de escrever. Pra ver como a série permite tantos significados. Valeu por compartilhar!

  6. Bom review Helio. Vou te dizer que curti bastante o fim da série. E achei muito legal o final sugestivo de que o Don teria feito o comercial da Coca. Rsrs logo de cara levei um tempo para entender, mas quando a gente se dá conta percebe-se que foi genial.

  7. Uma análise perfeita para uma série perfeita. Mad Men deixou um ar de nostalgia com seu final, incrivel o poder das séries em nos transportar para lugares e situações que não vivemos e desejar ter feito parte de tudo isso.

  8. ( SPOILER )Pude ver o final apenas agora, posso apenas dizer, que essa serie me emocionou do começo ao fim, uma serie que merece ser vista novamente daqui alguns anos.

    Fiquei surpreso como cada dialogo dessa serie foi bem escrito, e se manteve dessa maneira ate seus momentos finais.

    E a serie provou, como e possivel manter uma roteiro eficiente, sem apelar nenhuma vez se quer, para nudez, ou cenas de sexo explicito. Acho isso, um feito grandioso para a tv de hj em dia, que cada vez apela mais pra esse tipo de cena.

    Fiquei triste com o final da personagem de January, mas achei muito sabio nao terem mostrado a morte da personagem, mas apenas terem revelado o seu destino.

    O final de Peggy achei meio forçado, mas me surpreendeu de uma certa forma, porque achava que esse seria um final perfeito para Joan e vice versa. Praticamente cada uma delas acabou no destino, que a maioria do publico achou que cada uma teria. Achei super interessante essa troca de papeis na vida delas.

    Agora o final de Roger foi engraçado, assim como o personagem sempre foi. E realmente Marie se conectou com ele em tao poucas cenas, como nenhuma outra personagem havia feito.

    E quanto a Don/Dick nao esperava melhor final para o personagem, acho que ele realmente se reencontrou depois de tantas decepçoes, mentiras, traiçoes, e amores perdidos.

    Uma serie sem igual, um classico da TV norte americana com certeza. Valeu cada segundo gasto da minha vida para acompanhar essa maravilha. Uma pena que o Emmy nao reconheceu isso esse ano, merecia ter levado o premio, por essa temporada tao redondinha.

    E cara adorei seu texto, acho que ele transmitiu tudo o que achei desse final. Parabens

  9. Que critica MARAVILHOSAAAAA!! Perfeita, impecável, irretocável.. Tal como merece uma das melhores séries de todos os tempos! Quanto ao final de Don Draper, eu prefiro acreditar na primeira teoria, a de que foi ele o criador do melhor comercial de todos os tempos. Faria todo sentido e nos remeteria ao início: Pq contar a história desse homem?

  10. Vejo tanta gente falando de Breaking Bad como sendo a melhor série, claro que gosto e algo realmente muito pessoal, mas para mim que ja fechei algumas séries posso dizer sem sombra de dúvidas que Madmen foi a série mais icônica que eu assisti, figurino, roteiro, ambiente, atmosfera… TODA a série e muito bem feita e muito bem produzida, caramba, eu quase chorei no final. essa série definitivamente me fez entender como uma série realmente pode mexer com sua imaginação!

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