sexta-feira, março 29 2024

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Hoje é dia 11 de novembro de 2015 e dois meses inteiros após o início do Fall Season, curiosamente não temos nenhuma série oficialmente cancelada por nenhum canal aberto norte-americano. Tem gente dizendo que desde os anos 50 isso não ocorre, mas certamente posso afirmar que desde que comecei a cobrir TV em 2006, há nove anos, não vejo nada igual.

À essa época em anos anteriores a temporada já havia feito no mínimo umas boas e merecidas duas baixas. Minority ReportThe PlayerBlood & OilTruth Be Told são apenas alguns exemplos de produções que hoje estão dançando na audiência, receberam redução de episódios, mas desafiam a lógica e simplesmente seguem no ar. Ano passado os primeiros cancelamentos começaram tardiamente em outubro, mas começaram. Então o que está ocorrendo aqui? Estariam os executivos ficando mais tolerantes? Pacientes? Não só isso. A TV dos EUA como um todo está sofrendo profundas mudanças e por diversos fatores. Mas pra entender precisamos retomar a história recente:

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A Greve dos Roteiristas de 2007

As alterações no modelo de negócios dos canais abertos americanos, ou seja, NBC, ABC, CBS, FOX e CW, responsáveis por despejar a maior quantidade de séries anualmente em cima de nós espectadores começou com a greve dos roteiristas.

Nos idos de 2007, a TV seguia sua fiel cartilha de estrear praticamente todas as suas novas apostas no período do outono no hemisfério norte, por isso chamado de Fall Season. Esse formato de estreia – “Setembro a Maio” – vem desde a era do rádio e envolve até mesmo o fim das férias de verão e o clima que começa a ficar mais ameno, fazendo com que mais pessoas fiquem em casa para assistir TV. Assim, naquele ano todos os canais fizeram o mesmo e jogaram temporadas e mais temporadas no ar. O mundo conhecia ali maravilhas como K-Ville, Back to You, Journeyman, Reaper, Cane, Life, Bionic Woman, Dirty Sexy Money, Women’s Murder Club, Samantha Who?Viva Laughlin, Cashmere Mafia,  Cavemen e Carpoolers. Era a época de ouro da TV!

Mas aí veio a greve dos roteiristas sindicalizados, que simplesmente cruzaram os braços e passaram a exigir, dentre outros direitos trabalhistas, remuneração pela renda obtida pelas emissoras com a distribuição de conteúdo on demand via Internet e gravações em DVR, o que estava começando a aumentar. O embate durou desde o mês de novembro de 2007 até fevereiro de 2008, quando os sindicados leste e oeste chegaram a um acordo com a AMPTP, e nesse período nenhum roteiro fora escrito. Como os canais abertos produzem os episódios à medida em que são exibidos (não fazem tudo antes como no cabo), por volta de janeiro muitas séries simplesmente não tinham episódios para chegar até maio e suas temporadas foram encurtadas. Muitas séries foram encurtadas, outras adiadas e algumas simplesmente interrompidas e transmitidas sem qualquer desfecho [os efeitos diretos aqui].

Isso fez com que i) os canais passassem a dedicar-se num calendário chamado year long, onde eles deixam algumas séries “na gaveta” para estrear no Mid Season e ii) uma enxurrada de reality e game-shows (em sua maioria não roteirizados) tomasse conta da TV.

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A TV paga e um modelo mais “compacto”

Desde a década de 2000 produções da TV paga estadunidense vem roubando e muito os holofotes das “Big Four“: De The Sopranos Game of Thrones, passando por Breaking Bad, os canais fechados estabeleceram um novo padrão vencedor de composição de temporadas e qualidade de roteiro: com 8 a 13 episódios eles provaram que é suficiente para se contar uma boa história em vez de enrolar o espectador por 22 a 25 intermináveis semanas. A TV britânica segue um cronograma ainda mais enxuto, onde menos é (consideravelmente) mais.

Além disso, o modelo compacto atrai mais nomes consagrados do cinema que não querem ficar de seis meses a um ano atrelados a um só projeto. Com menos tempo de produção, os canais pagos podem estrear temporadas a qualquer época, inclusive fugindo do calendário tradicional e com a oportunidade de crescer muito mais. Não é à toa que o megasucesso Game of Thrones estreia sempre em abril, longe da briga de novatas e veteranas (entre outras dezenas de exemplos).

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TiVo, DVR e OnDemand

Convenhamos: quem hoje tem tempo para religiosamente esperar a série começar em determinado horário de determinado dia da semana e assim acompanhar seus mais de 20 episódios. E se você tiver que trabalhar? E se pintar um festa? E se outra série que você gosta passa na mesma hora? Quem assistia LOST pela TV, por exemplo, sofreu muitas frustrações quando preparavam tudo, chamavam amigos e se deparavam com uma reprise inadvertida no lugar do inédito. O TiVo é um serviço de DVR que se popularizou muito nos EUA, pois o equipamento não só grava todas as suas séries (muitas vezes sem você nem pedir, pois ele aprende seus gostos), como também automaticamente pula os comerciais e entrega tudo bonitinho em um clique.

Temos também sites como Hulu ou os próprios sites e aplicativos dos canais lá fora que reprisam toda a programação à sua conveniência (exibindo uma propagandazinha antes e durante, claro). Mas é o espectador que decide quando e onde vai ver. Isso é algo tão sem volta que a Nielsen, empresa que mede a audiência lá, precisou criar um novo algoritmo e um sistema proprietário para medir a audiência “ao vivo” e somá-la ao resultado de performance dos sete dias subsequentes à exibiçãode determinada produção no DVR ou na web. Criou-se aí a audiência “Live+7”.

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O efeito Netflix e a revolução online

Claro que a gigante do streaming de Los Feliz é a bola da vez, não só na produção de conteúdo original, como também de “resgate”. Quantos pilotos, dramas e comédias cancelados nos últimos tempos não conseguiram uma sobrevida graças à “benevolência” de empresas como a Netflix, Amazon e Yahoo? Isso sem contar os canais de cabo básico como TBS, Comedy Central, TNT ou operadoras como a DirecTV que fazem o mesmo. Você acha que essas empresas fizeram isso com pena dos atores ou do público? Não.

Manter uma série com baixa audiência no ar pode ser caro. Pode. Mas é ainda mais caro desenvolvê-la do zero. Por isso muitos ficam ali à espreita, esperando uma série ser cancelada para injetar uma grana (afinal figurinos, cenários, roteiros etc. já estão todos prontos), mudar alguma estratégia de marketing e aproveitar o nicho para relançá-la. SouthLAnd, Damages, Friday Night LightsFuturamaThe Killing, CommunityArrested Development são exemplos de séries canceladas que retornaram, isso sem falar nos revivals, reboots e remakes que chegarão por aí

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Minisséries e a Nova Onda das Séries Limitadas

Não, não estou falando de clássicos como From Earth to the MoonBand of BrothersThe Pacific etc. O que aconteceu foi que Ryan Murphy cansou de ver suas séries perdendo audiência a cada temporada até se tornarem irrelevantes e passou a investir forte num formato que há tempos não estava em uso: séries com temporadas independentes e ligadas apenas por uma temática. Sua American Horror Story fez escola e hoje vários exemplos pipocam por aí. Ah, a temporada não foi bem de audiência? Então não era série, era só uma minissérie mesmo. Ah, foi bem? Então isso muda tudo: renova aí, chama novos atores, dá um tapa no visual e chama de série limitada. É preciso se adaptar. Apostas para #TrueDetectiveSeason3?

O Resultado

E por que tudo isso aí em cima contribui para que hoje, em pleno novembro, não termos uma só série cancelada? As séries estão melhores e por isso não estão sendo canceladas? Não. Os executivos de TV e o mercado aprenderam a lição a duras penas e todos esses fatores acima ajudaram a moldar uma transformação que vem aos poucos, mas que agora atingiu o ponto sem volta. As séries serão canceladas, mas não como vinha sendo feito antes.

Com o fim da concentração de estreias no Fall Season, emissoras passaram a ter mais “planos B” caso sua aposta inicial não dê certo. Além disso, com público e mercado aceitando ou até preferindo temporadas menores, como ocorre no cabo, não há aquela pressão absurda para o “Back 9” (a encomenda que leva a produção de 12 pra 23 capítulos). Algumas funcionam bem com 10 a 12 episódios e as chances delas serem “encerradas” como uma minissérie facilita, inclusive, a revenda internacional. The Player tá aí estreando no Universal Channel com maleta de brinde e tudo. Outras produções já são concebidas com acordos mundiais e por isso anunciar o cancelamento pode prejudicar estes contratos. “Deixa os gringos assistirem, em maio a gente lida com isso...”

Assim, as emissoras perceberam que é um bom negócio deixarem pra cancelar séries mais pra frente, lá pro Upfront, e extrair o máximo dela dos novos jeitos possíveis. Tem também a questão do DVR, claro. Existem alguns shows que não funcionam no “ao vivo” por uma série de motivos – passar no mesmo horário que The Big Bang Theory ou The Voice é um deles -, mas que silenciosamente vão construindo uma base de fãs com o tempo via on demand. Aí quando saem do ar atraem publicidade negativa para o canal e sabem quem vem? Isso mesmo, serviços de streaming que já estão de olho naqueles cinco a sete milhões de gatos pingados, que pra eles significam assinantes pagantes e com o bônus de não terem que desenvolver a série do início.

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Por tudo isso e mais (existem diversos fatores envolvidos que não cabem aqui), passaremos a ver os canais abertos (e os pagos também, claro) cada vez mais cautelosos com a forma com que tratam séries que não possuem um desempenho satisfatório de audiência, porque essa deixou de ser a única métrica a ser considerada. Muitas vezes o corte de episódios ou a realocação para outro horário ou plataforma pode ser a saída.

Fato é que a indústria está repensando a forma de fazer e exibir TV. Ano que vem Star Trek ganhará um reboot que vai ao ar exclusivamente num aplicativo da CBS. Já vivemos numa nova, dinâmica e interessante era da televisão mundial.

14 comments

  1. Porra que foda esse texto. Vc devia dar aula disso!!!!

  2. Muito bom o texto, eu mesmo nem começo a assistir algumas séries antes de ter 10-14 episódios, pois me garante que irei pegar uma temporada completa já renovada e não começar a assistir algo que terá um fim (com final ou não). Parabens

  3. Parabéns pelo texto! Excelente! É muito interessante ver como o mundo está mudando, na forma de produzir conteúdo, em especial pra tv!

  4. Adorei seu texto, na verdade foi muita coincidencia eu ter lido essa materia hj, porque ontem estava discutindo exatamente isso com alguns amigos meus. com esse texto vc clareou mais ainda a nossa discussao.

  5. Bruno, acompanho o trabalho de vocês há anos, mas mesmo eu também tendo um site (que fala de games) e sabendo da importância dos comentários, nunca ou quase nunca, me deixei levar ao ponto de comentar.

    Mas dessa vez foi demais.

    Que texto incrível cara! Tocou em pontos importantíssimos pra quem gosta de acompanhar qualquer tipo de série. Eu mesmo deixo de assistir uma série nova, esperando o resultado que ela terá. Se há a renovação eu acabo assistindo e apostando que vai durar. Mas já pensou se todo mundo fizesse isso? Nenhuma série passaria da primeira temporada.

    Então, todas as mudanças e principalmente, a Netflix, fazem realmente com que os canais se moldem a nova realidade e é ótimo perceber que eles estão fazendo isso a tempo. Pra gente, sobram mais opções, concorrências e o desespero por não conseguir acompanhar tantas séries ao mesmo tempo.

    Novamente, parabéns pelo artigo. Esse tipo de conteúdo diferenciado que a Internet brasileira precisa.

  6. Acompanho o site ha anos,mas não me lembro da ultima vez que vi um texto tão foda. Parabens Bruno,sensacional

  7. Engrossando o coro: excelente analise do novo cenario da TV americana (me lembro da greve dos roteiristas, mas sinceramente nao sabia do impacto a longo prazo que isso tinha causado).

    E, nossa, demorou demais para cair a ficha das emissoras de que pode compensar deixar uma serie no ar e fazer o dinheiro depois. Era muito decepcionante pro publico (principalmente o internacional) a quantidade de series sem final devido a baixa audiencia nos Estados Unidos. Hoje seria quase impensavel episodios ja gravados nao irem ao ar como rolava com muita frequencia antes. Agora no minimo vai pro site (e tem-se uma resoluçao pra quando for pra dvd/streaming). Ainda bem.

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