quinta-feira, março 14 2024

É no mínimo curioso que cada capítulo de O Mecanismo inicie dizendo que a obra é ficcional e “livremente” inspirada em “eventos reais”, mas encerra seus episódios indicando que é, na verdade, baseada no livro Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil. Assim, ao mesmo tempo em que tenta vender publicamente que é “isentona”- como ressaltado pelos realizadores em entrevistas -, mostra-se que se baseou em uma visão limitada de fatos que ainda não possuem resolução.

Se o competente José Padilha precisa constantemente dizer que sua produção e o roteiro de Elena Soarez são despidos de ideologia, é porque há uma patente necessidade de balancear algo que, na verdade, balanceado não está. Eles utilizam de um reducionismo enorme para contar uma história cheia de furos e inconsistências lógicas porque, bem, não há ainda uma versão completa dela.

Assim, O Mecanismo seria muito mais honesta com seu público se estabelecesse como uma série que possui, sim, um viés ideológico em vez de fingir que é totalmente neutra, até porque não é nenhum demérito posicionar-se contra a corrupção que existe neste país e que tem como grande contribuinte o próprio Partido dos Trabalhadores, assim como os demais, em especial PMDB, PSDB e DEM.

Padilha e Soarez, contudo, acertam em estabelecer um tom sóbrio e urgente para a narrativa de 8 episódios, que retrata o começo das investigações que culminaram na operação Lava Jato da Polícia Federal, apresentando os dois protagonistas (e narradores da história) Ruffo e Verena, que são bem interpretados pelos talentosos Selton Mello e Carol Abras. Ambos sabiamente não deixam seus personagens reféns das frases de efeito que constantemente são obrigados a emanar.

O melhor da série é a construção do vilão Ibrahim (Enrique Diaz, fenomenal), que percorre os capítulos como a figura mais interessante, cativante e rica da história, talvez por ser o único personagem que realmente evidencie que não necessariamente as coisas estão divididas entre “bem” e “mal” ou “esquerda” e “direita” como o texto maniqueísta constantemente sugere. Ele é capaz de criar um sujeito ao mesmo tempo frio, caloroso, empático e ameaçador.

Infelizmente, quando quer abordar a “política” por trás do chamado “mecanismo da corrupção”, Padilha e Soarez adotam uma visão ingênua dos acontecimentos, o que não o fazem por “desconhecimento” político. Isso fica claro quando vemos, por exemplo, o juiz Rico (Otto Jr, interpretando Sérgio Moro) lendo um gibi intitulado “O Vigilante Mascarado” e andando com sua humilde bicicletinha por cartões postais de Curitiba, ou quando simplifica questões complexas de forma demasiadamente expositiva e num tom condescendente com o espectador.

Isso fica ainda pior porque sabemos que as mentes por trás deste trabalho têm total competência para serem muito mais sutis do que (não) são, como fica claro no momento em o ex-presidente atende a um telefonema no famoso triplex de Guarujá (sem precisar explicitar onde é, o que é genial), ou quando o candidato opositor do atual “regime” (claramente Aécio Neves), é retratado em festas com bebidas e outras “substâncias” jamais mencionadas.

Apesar de sucinta, O Mecanismo é repetitiva, inclusive na narração em off que surge mais para tentar minimizar os problemas do texto degringolado do que para conduzir a narrativa para frente. Embora tente humanizar os personagens, como os Policiais Federais e membros do Ministério Público, o fazem com situações desinteressantes e que jamais possuem propósito na trama, como as “saídas” da esposa de Ruffo ou o relacionamento entre Verena e Cláudio.

Tecnicamente competente como todos os trabalhos de José Padilha e bem dirigida (os episódios comandados por Daniel Rezende, de Bingo – O Rei das Manhãs são os melhores), O Mecanismo é uma série que poderia ser bem mais eficiente se realizada mais à frente e com maturidade histórica maior, como é o caso de Narcos, também produzida por Padilha. Não é despida de momentos inspirados, porém. A sequência envolvendo um problema de esgoto na casa de Ruffo (com direito a um “cameo” inspiradíssimo de Julinho da Van, nosso anjo de bigode) é um exemplo da competência da série em ser incisiva quando quer, neste caso retratando a corrupção endêmica que acontece no dia a dia. Logo após, contudo, o personagem de Ruffo vem a explicar tudo que ocorreu, indicando que os realizadores não confiem no discernimento de seu público e optam por mastigar cada detalhe do roteiro.

Ah, e sobre essa discussão de mudança da famosa fala, lembre que o diretor também deixa claro em uma cena no terceiro ato que o impeachment da presidente Dilma foi um golpe orquestrado pessoalmente por Aécio e Temer (ou suas versões na série) em uma reunião a portas fechadas, para tirá-la do poder e permitir que a investigação pare. Isso, concordando ou não com a opinião do diretor, também é uma visão limitadíssima de um acontecimento politicamente mais robusto como foi, envolvendo não apenas o executivo, como também o legislativo e o judiciário.

Fato é que o drama se desenrola falando sobre o tal “mecanismo” como se seus produtores tivessem redescoberto ao roda ao ler um livro sobre uma das várias versões inacabadas de um esquema muito mais complexo e engendrado do que podemos compreender como coadjuvantes que somos de tudo isso.

Uma pena, pois O Mecanismo poderia ser um thriller muito mais eficiente se soubesse se distanciar mais da fantasia pueril e simplória que criou sobre a intrincada Operação Lava Jato.

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