quinta-feira, março 28 2024

[contém spoilers da 1ª temporada] Olha, não lembro a última vez que uma personagem tão acachapante quanto Villanelle deu as caras em séries. Claro, ela não é a única coisa incrível de Killing Eve, série da BBC America que ainda não tem canal no Brasil. Inclusive boa parte desse magnetismo que a vilã possui é reflexo da construção de todo o universo da série. Afinal, a trama não poderia ser mais simples – uma agente britânica tenta encontrar uma assassina profissional com a mesma obstinação que eu e você tentamos encontrar a chave de casa quando estamos com pressa -, mas a abordagem transforma a história em algo mais. Algo dramático, engraçado, dinâmico, divertido, subversivo e pungente. Algo à parte.

Como é uma trama de espionagem, a linguagem segue aquele manual de fotografia dessaturada, câmera na mão, montagem contida (a não ser quando a ação veste o uniforme e entra em campo), cenários ao redor do mundo, letterings com fontes garrafais, enfim, aquilo que a franquia Jasoun Bourne espalhou pelo mundo. E é engraçado como esse tipo de linguagem já é facilmente reconhecível, mas a série aproveita e subverte essa familiaridade que a estética nos traz: a mise-en-scène é sempre peculiar, seja para provocar humor (as cenas de Villanelle com Irina, por exemplo), seja para aproximar personagens (a naturalidade com que Eve se troca na frente de Barry), seja para gelar a espinha (o encontro entre Barry e Villanelle na boate, onde a perseguição é realizada com o espectador sabendo que é o perseguidor quem está correndo perigo). O que acontece dentro do quadro foge do que esperamos, ajudando a dar uma identidade única a Killing Eve.

Pois essa personalidade marcante e atípica da série é construída com cuidado, episódio por episódio. O que inicialmente parece o clássico jogo de gato e rato – Villanelle comete um assassinato, Eve vai atrás, por pouco não se encontram, cada uma volta para casa amargando o “quase” com mais frequência que a seleção argentina etc – acaba se transformando em um bizarro relacionamento à distância entre vilã e mocinha. Quem ganha com essa mudança é a trama, pois segue por um caminho de complexidade que obriga os personagens a se confrontarem com situações imprevisíveis. Sim, existem as típicas reviravoltas das histórias de espionagem, mas é impressionante o quanto a) o show quebra nossas expectativas (por exemplo: o assassinato em Berlim ou o momento em que, mesmo dentro do carro, Eve desiste de fugir) e b) cada episódio tem uma cena que parece surreal, porém está de acordo com o que foi apresentado até ali (pra ficar em apenas um exemplo: o fetiche de Villanelle).

Graças a essa alergia a soluções mecânicas e repetitivas, Killing Eve consegue se aproximar de suas duas protagonistas com estilo – e com muita eficiência. Inicialmente uma mulher focada e ligeiramente workaholic, Eve vai sutilmente cruzando o Cabo do Bom Senso até chegar à paixão e depois obsessão por sua antagonista, algo que a série retrata sem cortar caminhos: a insistência de ir atrás de Villanelle, de sempre estar presente fisicamente, as esquisitas trocas de presentes, a descrição feita à polícia, a dúvida entre odiar e amar a assassina, tudo isso vai se acumulando e sustentando a trajetória percorrida pela personagem. Até mesmo a família dela é tratada com um pouco mais de carinho, funcionando genuinamente como prova de quanto Eve está disposta a abandonar a parentada para correr atrás da loirinha matadora (uma tática comum, mas normalmente abandonada a algumas cenas burocráticas).

Nesse caso, a atenção a alguns detalhes é fundamental (como o tipo de cabelo de Eve, algo recorrente no histórico de Villanelle), e as tentativas de humanizar a única trabalhadora sem sotaque do MI6 funcionam de forma certeira. Através de momentos como a a intimidade com Barry e Elena e os percalços que surgem durante o pique-esconde mais perigoso do mundo, a personagem se torna ainda mais complexa. E Sandra Oh (Grey’s Anatomy) tira de letra os desafios, enchendo Eve de determinação sem deixar de lado a vulnerabilidade e o horror que atingem a moça de todos os lados, além de contar com um timing cômico vitorioso.

Do outro lado, Jodie Comer (Doctor Foster) move montanhas como Villanelle – ou Oksana -, a assassina profissional que tem a capacidade matadora de um ninja e a maturidade emocional de uma revista de fofocas. Talvez o mais perto que já chegaram de igualar o Coringa de Heath Ledger, a atriz e os realizadores constroem uma personagem hipnótica, que consegue ser ao mesmo tempo genuinamente engraçada e assustadora. Cada vez que ela aparece, Killing Eve entra meio que num modo roleta russa.

Já na primeira cena da série o desquilíbrio da moça fica evidente, quando ela derruba o sorvete de uma menininha apenas porque sim. Depois é só ladeira abaixo: completamente incapaz de diferenciar um assassinato de uma ida ao supermercado para comprar detergente, Villanelle é guiada não por dinheiro, não por moral, e sim pelo que ela gosta de fazer. Isso permite alguns diálogos sensacionais (“sim, mas primeiro vou usar você para fazer sexo“, “problema resolvido“, “você sabe que eu gosto dos asmáticos“), bem como algumas cenas igualmente sensacionais (por exemplo: se fingir de morta antes do contato chegar), e aos poucos vai exibindo a absurda insanidade daquela mulher – que talvez só encontre reflexo em sua habilidade assassina.

E graças ao timing cômico e naturalidade de Jodie Comer, nada disso soa como arrogância ou sadismo. Villanelle é o tipo de pessoa que se encontra em uma situação praticamente inescapável e dispara um “por acaso você deu uma festa aqui?” sem um pingo de sarcasmo ou ironia. É apenas o jeito dela se divertir e lidar com as coisas, uma abordagem que enche qualquer situação de possibilidades – e os roteiristas da série aproveitam cada uma delas sem piedade, fazendo com que até o mais prosaico dos encontros tenha algum diferencial (tanto que não há nenhuma estratégia de assassinato “repetida”).

Porém, a vida de matador profissional não é apenas humor e piadas, e essa imprevisibilidade desenvolvida pelo roteiro também torna a moça uma ameaça cem por cento do tempo. Através de matanças, disputas e confrontos, Killing Eve deixa bem claro que Villanelle é mais eficiente, implacável, rápida, astuta, forte, habilidosa e inteligente do que o resto da galera. Mais do que falar, a série faz questão de MOSTRAR isso. E como a vilã é guiada por razões que a própria razão desconhece, podendo atacar qualquer um a qualquer hora e em qualquer lugar, e para ela matar é algo tão casual quanto esquecer o arroz no fogo durante um telefonema, cada personagem que divide o quadro com a moça tem grandes chances de bater as botas. O que muitas vezes cria um suspense tenebroso.

Talvez o melhor exemplo desse combo brilhante de peculiaridade, eficiência e Deus nos acuda seja o seguinte: a próxima vez que eu estiver em uma festa, com bastante gente em volta, um ambiente controlado e animado, e encontrar uma mulher realmente muito bonita, com um rosto sereno e amigável, e essa mulher me olhar nos olhos e sorrir para mim, vou imediatamente virar as costas e sair correndo.


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