quinta-feira, março 28 2024

Ao longo dos anos muito se discutiu sobre a preferência de áudio original e legendas x dublagem na TV paga e serviços de streaming, mas isso foi pacificado à medida em que os canais e estúdios perceberam que o consumidor brasileiro merece ter à sua disposição todas as opções, especialmente agora que a tecnologia permite vastamente a escolha no controle ou no clique do mouse. Há quem goste e há quem deteste o áudio dublado, mas esta é outra discussão. No Brasil vário estúdios e profissionais se dedicam a executar um trabalho de dublagem de qualidade para as atrações.

Esse, contudo, não é o caso da dublagem oficial de Doctor Who, série que no Brasil agora é exibida pelo serviço de streaming da Sony, o Crackle. Nos últimos dias diversos excertos de trechos da tradução feita começaram a circular na Internet. O grande problema nem é a qualidade (baixa) das atuações (feitas por brasileiros na Flórida, segundo especialistas), mas sim a quantidade de alterações sendo realizadas no texto original.

Em um dos exemplos, as referências à atriz Audrey Hepburn e ao matemático Pitágoras são alteradas para “Carmem Miranda” e “Palmirinha” (????). Além disso, no texto abrasileirado o cantor Ed Sheeran virou o empresário “Silvio Santos” e há até uma conversa em que os responsáveis pela versão conseguiram incluir uma disputa “Boulos x Bolsonaro” num texto que nem tem conotação política no original. Veja abaixo:

Os exemplos deixaram fãs e profissionais da dublagem irritados com o desserviço que tais alterações causam, além destas subestimarem a inteligência dos fãs brasileiros da série. O dublador profissional e renomado Guilherme Briggs, manifestou sua indignação por meio de seu perfil no Twitter:

Não façam isso com Doctor Who na dublagem, por favor! Colocar “Boulos” e “Bolsonaro” pra fazer humor barato e forçado? QUEREMOS DUBLAGEM DE QUALIDADE! (…) Eu não acredito que fizeram isso, é inacreditável, decepcionante e frustrante. A gente luta pela qualidade da dublagem no Brasil e estúdios de Miami fazem isso?”

Pedro Alcântara, dublador e diretor de dublagem, elenca os motivos pelos quais um trabalho é caracterizado como “de qualidade” e enumera as razões pela qual a dublagem de Doctor Who é mal feita:

Antes de começar, vou relembrar resumidamente o que torna uma dublagem boa: vozes que combinam; boas interpretações; tradução e adaptação de qualidade e mixagem caprichada. Dito isso, vamos à dublagem de Doctor Who. As vozes combinam? Algumas sim, mas a maioria não. E isso não é o suficiente. As interpretações estão boas? Não, nem um pouco. Na dublagem, o personagem Ryan tem um jeito malandro, o que não tem nada a ver com a ideia original. Todos os outros personagens estão falando no tom errado e com as inflexões erradas. Basicamente, todos falam com o sotaque esperado de americanos falando português ou de brasileiros que estão morando há pelo menos alguns meses lá fora. A tradução e a adaptação estão boas? Não. Nem um pouco. Nem perto disso.

Alcântara relembra tecnicamente a diferença entre adaptar e “inventar moda”:

Adaptar não é colocar piadas brasileiras sem critério algum numa dublagem. Adaptar é passar a mensagem correta em outro idioma. O público não é burro, sabe que os personagens são britânicos e não devem saber quem é Palmirinha. E os óculos escuros usados na cena, aliás, são iguais aos que a Audrey Hepburn usou em Bonequinha de Luxo e a dublagem matou isso. No terceiro episódio, uma piada envolvendo Banksy foi trocada por uma piada com Tarsila do Amaral. No original, a piada se referia ao fato de ninguém saber ao certo a real identidade de Banksy. Não dá pra dizer que existe uma equivalência entre os artistas nessa piada. No quarto episódio, foi feita uma piada envolvendo Boulos e Bolsonaro. Deixou a dublagem datada e tirou o foco do roteiro, que no original evidenciava a solidão da personagem Yaz, e não sua opinião sobre políticos brasileiros.

Alcântara finaliza dizendo, ainda, que o péssimo trabalho executado por estúdios sediados fora do Brasil ainda prejudicam o trabalho de atores certificados aqui:

A 11ª temporada de Doctor Who está sendo dublada em Miami, tirando trabalho de atores brasileiros, que vivem no Brasil, com registro profissional e formação adequada pra exercer uma profissão regulamentada por lei, num mercado de trabalho com regras organizadas. A dublagem, tanto como trabalho artístico quanto como recurso de localização e inclusão, é uma das engrenagens da indústria audiovisual, que gera impostos e movimenta nossa economia. Quando o Crackle exibe uma dublagem feita em Miami, não só desrespeita o público com um produto de qualidade e procedência duvidosas como também prejudica a indústria audiovisual brasileira, desrespeitando toda uma categoria de profissionais envolvidos. Sou dublador desde os 7 anos, diretor de dublagem desde os 19, fã de Doctor Who desde os 17 e sei do que estou falando. Gostaria que o dinheiro que pago pro Crackle fosse compensado com um serviço de qualidade 100% aproveitável.

Leitores do site e fãs da série também se manifestaram:

https://twitter.com/ismar_junior/status/1058459606933012480

Entraremos em contato com o Crackle Brasil sobre a questão da dublagem da série.


Atualização: o Crackle Brasil se manifestou:

Crackle se manifesta sobre o caso das dublagens de Doctor Who

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