quinta-feira, março 14 2024

Eu terminei de ver Bandidos na TV com mais dúvidas do que certezas. Claro, eu já havia me deparado com o caso de Wallace Souza nos idos de 2009 quando o caso explodiu no noticiário nacional e internacional devido ao fascínio que a história de barbárie causa. Não é por menos: um proeminente apresentador de um programa policial que cobria o “mundo cão” estaria envolvido nas próprias mortes que seu programa da TV amazonense Canal Livre noticiava, lucrando ainda por associação ao tráfico que dizia combater e dando um novo sentido à expressão “Quarto Poder” da imprensa.

Na Zona Franca da droga, rota principal entre a América Central e Sul, a cidade de Manaus era (e ainda é) o epicentro da violência entre gangues no Norte do país. É nesse mundo que Wallace Souza fez o seu nome. De ex-policial, ele se tornou um dos Deputados Estaduais mais votados da história do Amazonas graças à repercussão de seu programa local que começou na segunda metade da década de 90 e que estranhamente era sempre o primeiro a chegar para reportar cenas esdrúxulas de crimes hediondos e homicídios com corpos alvejados ou carbonizados e literalmente ainda esfriando diante das lentes.

Bandidos na TV, série documental original da Netflix, contudo, vai muito além de simplesmente acusar Wallace – o que seria uma tarefa simplória e repetitiva. A produção da Caravan e Quicksilver opta pelo caminho mais difícil e busca destrinchar o ecossistema político e policial que desafia até mesmo o realismo fantástico da literatura latino-americana, com camadas e reviravoltas que invejariam os mais célebres autores de ficção. Os 7 episódios costuram de forma brilhante e por meio de extenso material de arquivo, pontuais reconstituições magistralmente executadas e impressionantes entrevistas com envolvidos diretos, a complexa e sórdida trama que tem repercussões até os dias de hoje, num trabalho de síntese único e com uma pós-produção de imagem arrojada.

A docussérie apresenta um conjunto de evidências, coincidências e depoimentos que colocam Wallace Souza e seu filho mais velho, Raphael Souza, no centro de uma perigosa organização criminosa capaz de tudo em nome de prestígio e audiência para o programa de TV. Não obstante, porém, a atração procura apontar também as diversas inconsistências no caso da Força Tarefa criada pela polícia para cassar e prender o então Deputado, quando esse começou a incomodar figuras poderosas da região. Havia muita coisa errada sob vários ângulos.

Assim, à medida em que a narrativa de Bandidos na TV se desenvolve com maestria, começamos a perceber que nem tudo pode ter ocorrido de forma tão objetiva e simplória quanto ambos os lados do caso pregam (Wallace e cia. x Polícia e Ministério Público) – aliás, é surpreendente a sensibilidade e o respeito com que os realizadores conduzem e retratam depoimentos de familiares do apresentador, evitando que o documentário se torne uma peça meramente sensacionalista como o programa do próprio personagem.

Mesmo sem ser (e sem precisar ser) equilibrado, o documentário se torna bem mais rico do que as várias reportagens de TV sobre o caso – e é impressionante como um fato tão notório há pouco mais de 9 anos já se tornou completamente esquecido – justamente por dar voz a envolvidos diretos e indiretos de toda a história com um distanciamento estéril e sem querer direcionar ou conduzir a opinião do espectador sobre o que é narrado, preferindo que este formule suas próprias teorias e conclusões (e há muito material para termos o que sopesar neste caso: a quantidade de dinheiro na casa de Wallace e desculpas esfarrapadas sobre seu envolvimento com “Moa”, as testemunhas de ambos os lados que apareciam e desapareciam com depoimentos convenientes, as tentativas – também de ambos os lados – de forçar versões de certos acontecimentos sem provas materiais, as coincidências extremas etc).

O fato é que Bandidos na TV é uma documentário true crime que vai além do óbvio, faz perguntas necessárias e estabelece-se como um dos melhores exemplos de jornalismo investigativo no Brasil nos últimos anos.